A gasosa Cini sobrevive em meio a milhares de garrafas de Coca-Cola e o vampiro com mais de 80 ainda dá as suas caminhadas incógnitas do Alto da XV em direção ao Passeio Público. A Frischmanns foi uma das últimas a desaparecer num cemitério em que jazem marcas antes famosas e onipotentes como Bamerindus, Hermes Macedo, Prosdócimo, Essenfelder e outras.
A Rua das Flores, poucos ainda usam este nome, cada vez mais apinhada de gente apressada e a Rua 24 Horas mais pra lá do que pra cá. Os ligeirinhos, toque de Midas do transporte urbano nos anos 70s, andam cada vez mais apinhados; na hora do rush passam direto, porque não cabe mais uma alma dentro, deixando gente brandindo guarda-chuvas no terminal. Como diria o cartunista Solda, a cidade está cada vez mais cruel.
O furor gravitacional da globalização não perdoou a cidade. Ao contrário, trouxe marcas para os arrabaldes como Siemens, Renault e Audi e produziu outras, como Boticário. A Curitiba de hoje é uma metrópole urbana moderna; com muitos problemas e, pior, poucas soluções à vista, como há trinta anos, o que a elevou à categoria de cidade modelo no Brasil - e, orgulho dos orgulhos -, quiçá no mundo. Apesar disso, apesar de tudo, o mito sobrevive incólume, altaneiro e varonil. Porque uma cidade sem mito, não é cidade, é um aglomerado de casas e gente.
A verdade é que toda cidade que se preza tem sua mitologia, mas nenhuma no Brasil foi capaz de levar esta mitologia tão a sério e longe quanto Curitiba. Em parte porque a cidade sempre se reinventa para desespero de alguns velhinhos - e reinventa a sua mitologia. Em parte porque o curitibano é dissimulado profissional que adora falar mal dos defeitos que não tem para encobrir os que têm numa espécie de biombo antropológico.
Há alguns anos o poeta Décio Pignatari, que nunca foi neoconcretista, mas tornou-se um neocuritibano, publicou longo artigo na Gazeta do Povo em que procura desvendar o caráter curitibano a partir da ocupação dos Campos Gerais, por imigrantes de países do leste europeu. A impressão que ficou do artigo é que Pignatari passou perto sem a preocupação épica de outro ensaísta que também quase desvendou o mistério, Wilson Martins em seu Um Brasil diferente. Desvendar Curitiba e o caráter irascível de seus moradores não é tarefa fácil. Mas vamos ser claros: não é esta a pretensão de Dante Mendonça em seu livro Curitiba -piores qualidades e melhores defeitos que o escritor, jornalista e chargista de O Estado do Paraná lança no próximo sábado (28), a partir das 11 horas, no Bar do Passeio Público (antigo Bar do Pasquale), por ocasião do 316.º aniversário da cidade. O livro é apanhado delicioso de histórias, versões, piadas, acontecimentos, declarações e tipos que ignoram o tempo e reforçam a mitologia curitibana, de uma cidade que deu certo, habitada por sujeitos às vezes excêntricos, às vezes grossos, mas no fundo tudo boa gente.O subtítulo - “piores qualidades e melhores defeitos” - deixa clara intenção de passar longe dos piores defeitos e das melhores qualidades, que seria mais esclarecedor e mais “antropológico”, ficando em algo folclórico, numa espécie de roteiro emotivo da cidade especialmente dos últimos 50 anos, quando ela conseguiu a proeza de se tornar uma metrópole - embora no espírito nunca deixasse de ser província. Quem espera encontrar uma visão do inferno de Curitiba vai quebrar a cara. Vai se deparar com a visão bem humorada que Dante construiu da cidade conhecida por aí afora como um paraíso, não desmentido no livro, ainda que dentro dela se dá de barato a existência dos mesmos problemas que afligem as demais metrópoles brasileiras, com suas mazelas e angustias. Para conhecer esta Curitiba não é preciso ir longe. Basta correr de manhã a uma banca de jornais e empunhar um exemplar de Tribuna do Paraná. Assim, ao fugir das mazelas e angustias e se concentrar no folclórico, Dante reforça, intencionalmente, a mitologia curitibana.
O que não significa que estamos diante de um livro ruim ou desonesto. Ao contrário, estamos apenas diante de uma versão de Curitiba correta, porém não completa. E para quem quer fugir de desgraças o livro é prato cheio: é agradável, divertido e bem humorado.
Começa pelo começo do mito, com a charge de Tiago Recchia que traduz o que espera por um estranho na capital paranaense. O sujeito está com a mulher numa encruzilhada: ele pode ir para Florianópolis, Porto Alegre ou entrar em Curitiba, representada por um castelo envolto por neblina e sobrevoada por morcegos. Ele diz para ela? “Arriscamos?”. Faz parte do folclore, mas não longe da realidade. O livro ilustra, desta forma bem humorada, com dezenas de histórias uma verdade: o curitibano é arredio, irascível e não gosta de estranhos. E ponto final.
Dante reproduz a crônica escandalosa para a época (Curitiba, a fria, cujo subtítulo de Paulo Francis é um deboche delicioso: Onde Jânio Quadros comia mosca) de Fernando Pessoa Ferreira nos anos 60. Ali se encontra o DNA da coisa, a primeira versão escrita do caráter arredio e frio do curitibano. O resto, como admite Dante, é consequência. O livro ainda brinda o leitor com passagens do impagável Dalton Trevisan, o curitibano que mais expôs os tipos da cidade, embora de forma literária, numa espécie de autópsia interminável. Sem contar Paulo Leminski, cuja vida foi dureza e ao morrer virou pedreira. E de outros que vieram a se juntar a urbe paranaense, como o escritor José Castelo, que entoa: “Me tornei curitibano seja lá o que isto significa”. Uma expressão à qual poderia acrescentar, imbuído de autêntico espírito curitibano: “Nunca serei um curitibano, seja lá o que isto significa”. E por se tratar de obra focada numa época - os últimos 50 anos - há verdadeira arqueologia dos pontos da cidade erigidos durante o antológico período Lerner. Ele apresenta o Gênesis de pontos que vão da Rua das Flores ao Jardim Botânico e recentemente o Museu do Olho, que se chamou Novo Museu e -por graça de Roberto Requião, que desejou acrescentar algo relevante à obra já pronta - ganhou um terceiro nome: Museu Oscar Niemeyer. A foto da capa do livro, um almoço num grande buraco no centro da cidade ao fim de uma intervenção urbana ilustra este aspecto meio bizarro, mas muitas vezes inventivo, do curitibano. Há ainda roteiro de Poty Lazarotto - o artista curitibano por excelência - dos pontos preferidos na capital paranaense.
E desfile de tipos que sem eles não existiria esta Curitiba estranha e maldita, porque eles se dedicam - às vezes entre gargalhada e outra - a alimentar o mito porque mito é como fogueira, se não bota graveto, o fogo apaga e a verdade aparece. E a grande verdade é que embora seja habitada por um tipo ressabiado e fugidio, Curitiba não é o inferno, tampouco o paraíso. É uma cidade como qualquer outra. Com algumas virtudes e outros defeitos. Uns melhores, outros piores.
Serviço
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